sábado, 15 de setembro de 2012

Com o giz na mão.

Sempre gostei de ilustrar minhas aulas, quando possível, com músicas.
Seja na forma ou no conteúdo, sempre procuro alguma música que ilustre bem a matéria dada aos alunos.
Certa vez me liga uma diretora chamando para substituir uma professora que faltara, numa sala de ensino médio na escola estadual.
Fui chamado em cima da hora e a professora não deixou nada preparado. Apenas que ela estava falando sobre escravidão no Brasil.
Foi a deixa para eu usar uma aula que tinha pronta há algum tempo.
Usando a música "Vai passar" do Chico Buarque, consegui dar uma aula bastante interessante, muito embora essa música tenha um duplo sentido, critica dois momentos históricos do país, porém ambos caracterizados, cada um à sua maneira, como opressor às liberdades individuais.
Num primeiro momento, há a crítica sobre a escravidão no Brasil colonial; em outro, a crítica ao regime militar no Brasil dos anos 60 e 70.
Segue abaixo a letra (em azul) e algumas explicações (em vermelho), e o vídeo que, fosse hoje, ilustraria a aula.
Ficou um pouco extenso mas vale a pena.

Vai Passar 
(Chico Buarque e Francis Hime).
 
Título:
- Em princípio refere-se à escola de samba que vai passar pela avenida.
- Entretanto, pode ser visto também como expressão de que o momento histórico seja passageiro. Algo sofrido mas que vai passar, não é permanente. Um mal que não durará para sempre.

Vai passar nessa avenida um samba popular
Ratificando a ideia do título, apresenta um cenário de avenida por onde uma escola de samba irá passar no desfile carnavalesco.
Cada paralelepípedo da velha cidade essa noite vai se arrepiar
Ao lembrar que aqui passaram sambas imortais
Que aqui sangraram pelos nossos pés
Que aqui sambaram nossos ancestrais
O samba, ritmo de fortes elementos da cultura afro, é algo que no Brasil transcende às raças.
O brasileiro tem o "samba no pé", não importa a cor da pele. Portanto há aqui uma valorização da contribuição da cultura africana, trazida pelos escravos, na constituição da cultura brasileira.
Ao falar "ancestrais", Chico Buarque salienta a África como berço do Homem.
Num tempo página infeliz da nossa história,
passagem desbotada na memória
Das nossas novas gerações
Esta estrofe reforça duas vergonhas nacionais: Escravidão do negro no Brasil e o regime Militar pós 64.
"Página infeliz da nossa história", que as novas gerações não conhecem não é apenas a escravidão no Brasil, mas também o regime militar.
Ambos foram marcados pela falta da liberdade de uma parcela significativa da população e pela opressão da elite dominante.
Dormia a nossa pátria mãe tão distraída
sem perceber que era subtraída
Em tenebrosas transações
O Brasil é visto aqui como uma pátria mãe gentil, que não pode ser condenada pela barbaridade cometida pelos seus governantes, sobretudo a elite agrária brasileira que fez do comércio de escravos (tenebrosas transações) a base da economia colonial dos séculos XVII - XIX.
O Brasil, nação, não pode ser responsabilizado por esse crime cometido pela elite agrária.
Seus filhos erravam cegos pelo continente,
Tanto pode ser os escravos que atravessavam o Atlântico vindos do continente Africano para cá; como pode representar os exilados políticos que tiveram de deixar o continente americano para não ser presos, torturados e mortos.
Em ambos os casos, temos a perda da liberdade, os maus tratos e a violência contra seres humanos, protagonizados pelos então governantes.
levavam pedras feito penitentes
Erguendo estranhas catedrais
Os negros escravos ajudaram a construir um país para brancos.
As obras que eles eram obrigados a construir, não tinham as características da sua cultura, mas da cultura branca que lhe forçava a trabalhar em péssimas condições de trabalho.
Construções estranhas para eles mas que por força das circunstâncias eram obrigados a construir daquela maneira.
E um dia, afinal, tinham o direito a uma alegria fugaz
Uma ofegante epidemia que se chamava carnaval,
o carnaval, o carnaval
Carnaval é a festa popular onde mesmo o mais simples cidadão tem direito à alegria.
Para os escravos eram dias de festejar sua própria cultura, para os perseguidos políticos da ditadura, a oportunidade de esquecer os momentos de terror que o país vivia.
Vai passar, palmas pra ala dos barões famintos
O bloco dos napoleões retintos
e os pigmeus do boulevard 
A teoria de que no carnaval mesmo o mais modesto folião tem seus dias de rei, pois o carnaval é (ou pelo menos era) uma festa popular sem distinção de classe social, é representada pelas metáforas do "Barões famintos" (o pobre tendo seu dia de nobre), "Napoleões retintos" (negro escravo, tendo seus dias de Imperador), pigmeus do boulevard (fantasias semelhantes aos adornos da avenida francesa).
Meu Deus vem olhar, vem ver de perto uma cidade a cantar
A evolução da liberdade até o dia clarear
Clama por Deus para que olhe a chegada da liberdade, tanto dos escravos, um processo finalizado com a abolição da escravidão no Brasil em 1888, como a liberdade dos perseguidos políticos, um processo encerrado com a abertura política e a convocação de eleições diretas (Diretas Já) no país.
"O dia clarear" é uma metáfora, simboliza que novos - e melhores - tempos estão porvir. Tempos de liberdade, do fim da opressão.
Ai que vida boa, ô lerê,
ai que vida boa, ô lará
O estandarte do sanatório geral vai passar.
"Sanatório geral" seria a hipotética escola de samba criada por Chico Buarque, que apresentou na avenida o samba enredo acima descrito.

Felizmente tanto a perseguição política da ditadura militar brasileira, como o regime de escravidão promovido pela elite agrária do país, são "páginas infelizes da nossa história" que não se repetem hoje em dia.
Ao menos, não de maneira institucionalizada, haja visto que ainda não temos uma liberdade de expressão 100% (exemplo disso é jornal O Estado de SP que está sob censura há 3 anos, impedido de manifestar-se sobre processos envolvendo a família Sarney).
E o trabalho escravo, não do homem como mercadoria, mas manifestado nas condições desumanas de trabalho que muitos fazendeiros submetem trabalhadores em estado de vunerabilidade social, que ainda é uma triste realidade nesses confins do Norte, Nordeste e algumas regiões de Goiás e Minas Gerais.




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