Alma, vendo
(Luís Fernando Veríssimo).
Decidi vender minha alma ao Diabo para
ser um homem de sucesso. Logo me deparei com um problema prático: como é que se
fala com o Diabo? Em todos os exemplos que conhecia, da literatura e do cinema,
o Diabo fazia o primeiro contato. O Diabo era o interessado, era dele a
proposta para comprar a alma. Como deveria proceder quem tinha uma alma para
vender e procurava o comprador?
Raciocinei que a melhor maneira de
encontrar o Diabo seria fazendo diabruras. Frequentando os lugares que ele obviamente
frequentava, convivendo com gente que ele obviamente influenciava, fazendo
coisas que ele obviamente aprovaria, e que chamariam sua atenção.
Comecei a visitar os piores antros, a
me dedicar ao deboche e à devassidão, a chutar velhinhas, a fumar cocaína e a
cheirar maconha (era viciado novo). Fatalmente, no meio de uma orgia, ou
atirado no chão de uma cela fria coberta com o meu próprio vômito, ou numa
reunião de comunistas planejando o sequestro de um arcebispo, eu encontraria o
Diabo e lhe ofereceria minha alma em troca do sucesso. Mas uma noite, pulando
uma cerca para estuprar umas galinhas, me dei conta de que minha estratégia
estava errada. Quanto mais diabruras eu fizesse, menos valeria a minha alma.
Por que o Diabo compraria uma alma que obviamente já era sua?
Passei a fazer o contrário, a viver
uma vida de ostensiva virtude. Em vez de chutar velhinhas, ajudava-as a
atravessar a rua mesmo que não quisessem. Tornei-me religioso. Cheguei a me
internar em mosteiros, para jejuar e me autoflagelar, na esperança de que o
Diabo, que não aparecera nas celas das delegacias onde eu penava minhas
ressacas, aparecesse nas celas do meu retiro, onde eu polia e encerava minha
alma para melhor comercializá-la. Mas o Diabo não apareceu; o jejum quase me
matou, mas o Diabo não apareceu.
Concluí que só havia uma coisa a
fazer: procurar pessoas que, na minha opinião, venderam sua alma ao Diabo, pois
nada mais explicava seu sucesso, e perguntar como tinham conseguido. Prometeria
absoluta discrição. Ninguém ficaria sabendo das suas transações com o Diabo, eu
só precisava da dica. O Diabo lhes aparecera voluntariamente ou fora conjurado?
De que forma? Havia algum intermediário, alguém agenciava o encontro? Tinham
assinado contrato?
Não deu certo. Por alguma razão, nenhum
dos que eu procurei reconheceu que devia seu sucesso a um trato com o Diabo, e
todos negaram conhecê-lo. Em muitos casos, ficaram indignados.
— Devo meu sucesso ao meu talento!
— Mas você não tem talento.
— Trabalhei muito para chegar onde
estou, meu caro.
Não adiantou eu insistir que a
informação seria confidencial, que eu queria apenas um acesso ao Diabo. Algum
telefone? E-mail? Como falar com o Diabo? Ninguém colaborou.
Minha última tentativa. Vou recorrer
aos jornais. Já bolei o anúncio que sairá nos classificados. Sob Negócios
Diversos.
"Alma, vendo ou troco por
sucesso, prestígio, poder. Garantia de entrega na minha morte. Não está
hipotecada. Tratar com..."
Mas também colocarei outro anúncio sob
Pessoais.
"Se você tem milhões de anos de
idade, cabelo engomado e cascos nos pés, isto talvez lhe interesse..."
Ou então alguma coisa mais direta:
"Me liga, Diabo!", e o
número.
Mas estou em dúvida. Em que jornal
publicar os anúncios, com a certeza de que o Diabo os lerá? O Diabo prefere a
imprensa mais ou menos conservadora? Desconfio que leia todos os jornais de
negócios, para acompanhar a aplicação, na prática, de alguns dos seus
ensinamentos, mas também leia a imprensa popular, divertindo-se com as notícias
sangrentas das seções policiais e se deliciando, nas seções de espetáculos e
TV, com o sucesso de tantos que trocaram suas almas pelo seu patrocínio.
Se isto também não der certo, não sei
mais o que fazer. Onde está o diabo desse Diabo? Que meios ele frequenta? E o
pior é esta sensação de que já estive do seu lado, e não o reconheci, e perdi a
oportunidade de negociar minha alma, que será minha até morrer, sem qualquer
lucro, e depois passará para o domínio público. Se o Diabo ao menos usasse um
escudinho na lapela!
Crônica publicada no livro “Orgias”, pela
Editora Objetiva.
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